Irmãs e irmãos em Cristo Jesus,
Celebramos neste mês de novembro o Dia da Consciência Negra, uma comemoração singular da história do nosso país, um festejo que deve ser celebrado a partir da reflexão que esta data simboliza para a sociedade brasileira, em geral, e para nós, cristãos inclusivos, em particular. Mas esta comemoração não pode ser mais uma grade protocolar de nosso calendário porque ela está profundamente ligada à nossa essência e à nossa formação enquanto cristãos inclusivos.
A pergunta que fazemos hoje é: será que todos e todas nós sabemos disto?
Quando falamos em “Consciência Negra” estamos demarcando um território. Está sendo dito que um grupo existe e sabe de si. Um grupo que clama pela justiça, pelo amor e pela inclusão que defendemos quando somos conscientes. Falamos de um grupo que quer ser considerado o seu próximo, porque por muitos anos lhe coube a distância, a margem, a invisibilidade. Hoje nós, agentes da inclusão, temos o direito e o dever de celebrar – pelos motivos mais variados – este dia que é tão caro aos negros e negras que constroem este país, e à nossa missão enquanto igreja inclusiva.
É preciso que debrucemos nosso olhar para a História, a fim de reconhecermos o enorme prejuízo que a escravidão africana trouxe para nossa sociedade. É necessário sabermos que a história dos negros não é apenas a história da escravidão. Precisamos saber que ao longo da História, a África contemplou desde reinos de dimensões faraônicas a sociedades orais com uma cultura complexa demais para nossa soberba. É preciso que saibamos apontar no mapa onde fica localizado o Djibuti, o Sudão e Moçambique, porque já estamos saturados de saber a posição dos Estados Unidos, de Portugal e da França. Será que alguém topa o desafio de dizer, precisamente, onde fica o Haiti? Se existe a dificuldade de identificar os atuais países onde a população é majoritariamente negra, muito mais difícil é identificar a negritude que está dentro de nós. É necessário reconhecermos a desigualdade que imperou no passado e que ainda justifica nossos muitos abismos sociais do presente. Abismos que fazem com que, no Brasil, a pobreza e a riqueza tenham cor. As turmas de medicina nas universidades têm cor. Os moradores dos prédios das áreas nobres do Rio de Janeiro têm cor. As favelas cariocas têm cor. Os analfabetos, os moradores de rua, os presidiários, os desempregados também têm cor. Nossa sociedade colorida brinca de esconde-esconde. Onde cada um de nós esconde o racismo? E por que fingimos não ver que as diferenças sociais que nos caracterizam são demarcadas pela cor da pele, ou vice-versa. E o que nós fazemos, enquanto cristãos inclusivos, quando a aquarela do arco-íris por vezes esconde o preto-e-branco? Será que nossa bandeira multicolorida reconhece a existência desses tons? É necessário tomarmos consciência e nos apossarmos das armas da inclusão. E ter consciência negra, irmãs e irmãos, não é apenas se reconhecer na negritude. É reconhecer a enorme dívida histórica que a sociedade, como um todo, possui em relação aos afrodescendentes, negras e negros, pardas e pardos, mulatas e mulatos, “e outros quase brancos tratados como pretos”*, ou “quase brancos pobres como pretos”* ou “quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres, e pobres são como podres, e todos sabem como se tratam os pretos”*. Consciência Negra não é coisa de negro. Para nós, cristãos inclusivos, Consciência Negra é coisa de todos e todas nós, porque este é o nosso dever. Precisamos aprender a localizar Moçambique. É preciso que saibamos onde fica o Haiti.
Irmãs e irmãos, o desafio que temos diante de nós é nobre. E cada conquista que temos na busca pela justiça e pela igualdade não é para outro fim senão para a glória do Senhor, que é o semeador da Diversidade e do Amor. Sabemos que a tarefa de lutar contra o preconceito é árdua e desafiadora. É um processo lento e gradual e envolve muita paciência, oração, sabedoria e educação. Incluir é agregar, acolher, amar. É a mais elementar e a mais difícil tarefa que temos enquanto cristãos e cristãs. Será que nós temos realmente noção do que é incluir? Será que nossa missão profética tem sido levada à prática com honestidade? Será que estamos exercendo nosso chamado com consciência? A pergunta é retórica, dispensa respostas rápidas. Examine cada um a si mesmo e analise até onde caminham os passos da inclusão até aqui. Onde quer que estejamos, não podemos esquecer que não estamos lutando pela inclusão cristã do homem homossexual branco da Zona Sul do Rio no Evangelho de Jesus Cristo. A despeito de ser a homofobia nossa vilã social de maior destaque, precisamos ter a consciência de que nenhum preconceito nasce sozinho. Toda forma de discriminação se apoia e se completa com seus pares. Assim é que o machismo é o pai da homofobia. E esta caminha junto com o racismo contra o qual manifestamos nosso repúdio neste manifesto. Homens e mulheres homossexuais merecem ser tratados de maneira equânime. Lésbicas, gays, héteros, bissexuais e transgêneros devem ser igualmente bem-vindos. Não pode haver nesta igreja hierarquia entre homossexuais negros e brancos. É inadmissível nesta comunidade que pratiquemos, ou continuemos a praticar, atos, gestos e pensamentos que diminuam pobres em relação aos ricos, que desfavoreçam gordos em relação aos magros, que ridicularizem afeminados em relação aos masculinizados, que zombem de nordestinos diante dos sulistas, que ignorem mulheres em meio aos homens que são sempre lembrados com naturalidade. Por fim, é necessário que repensemos as nossas atitudes quanto ao tratamento, à convivência e ao acolhimento que temos dispensado a nossas irmãs e a nossos irmãos que estampam em sua pele não mais que uma composição de melanina diferente, mas, em sua alma e em sua história, a dignidade negra que não pode e não deve ser ferida, ainda que o pretexto venha travestido de brincadeira ou jocosidade.
A maneira mais fácil de consolidar um pensamento, qual seja, é o humor. No passado, revistas em quadrinhos, televisão e cinema associavam o negro ou à barbárie ou ao ridículo. Na publicidade, nas artes, nos livros, nos programas de auditório, o papel do negro era o exotismo animalesco ou a piada fácil. Foi sobre as bases deste passado “engraçado” que esta sociedade nasceu e cresceu. Mas se é nosso papel anunciar a boa nova, em nome de Jesus, façamos uma nova história. Construamos uma nova sociedade. Se a lei justifica o preconceito, lutemos contra a lei que oprime, mas não percamos a legitimidade; se o humor justifica o preconceito, lutemos contra o humor cruel, mas não percamos a alegria; se a tradição justifica o preconceito, lutemos contra a tradição, mas jamais esqueçamos de nossa História.
Uma igreja que se denomina inclusiva, da mesma forma como tem em sua missão a construção de uma sociedade menos homofóbica, não pode corroborar com práticas discriminatórias outras, diferentes daquela que é sua grande inimiga: a homofobia. Uma igreja inclusiva que se omite diante do racismo e silencia frente às atitudes preconceituosas e discriminatórias relativas à cor da pele e à cor da alma é uma igreja falsa que proclama um evangelho falso. Uma igreja que permite que diferenças nos tornem desiguais, ao invés de promoverem em nós a igualdade na diversidade, é uma igreja acéfala, que não conhece sequer a sua missão e se caracteriza não mais pela ideologia da inclusão, mas pela falsidade ideológica. É uma igreja espiritualmente contraditória, pois atenta contra a verdade que proclama quando professa que “Deus não faz acepção de pessoas”.
Irmãs e irmãos, que tipo de igreja queremos ser? É preciso que esteja muito claro em nossos corações e mentes, antes do significado do que é “consciência negra”, tão somente o que é “consciência”. Ninguém é consciente sozinho. “Consciência” pressupõe, necessariamente, o outro. Ser consciente é ser ciente junto com o próximo; é, em outras palavras, a essência que alimenta a ética e o bem comum. E a boa convivência deve respeitar a diversidade que há na alteridade. Se nem mesmo os preconceitos nascem e crescem sozinhos, não há de ser a luta contra eles que nascerá e crescerá solitariamente. A luta contra um preconceito deve ser a luta contra todos. Se somos conscientes, incluímos sem excluir, respeitamos sem ofender, não vestimos a “hypocrisis” porque não fingimos ser o que não somos. Nós não teatralizamos a nossa missão, mas vivemos da verdade, no chão agreste da vida, sem máscaras. Se assim o fazemos, acertamos em cheio o alvo, que é o Amor. Por isso, consciência – para nós, cristãos inclusivos – de hoje em diante será uma palavra cuja semântica, sempre positiva, caminhará junto com a Justiça, a Paz, a Fraternidade e o Amor que proclamamos através do Evangelho com “E” maiúsculo, que não pode ser de outro, senão de Jesus Cristo, Deus que quis ter traquéia, que sentou-se com pecadores, que bebeu e comeu com excluídos, Deus que abominou a religião opressora e excludente, Deus que foi, é e sempre será Deus sobre justos e injustos, o mesmo que com seu sangue traduziu com perfeição o verdadeiro significado da palavra “Inclusão”.
A Comunidade Betel
Igreja da Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro
Igreja da Comunidade Metropolitana do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, 28 de novembro de 2010
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*Haiti, composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
**Redigido por Léo Rossetti e lido pela irmã Fabiana no Culto em Ação de Graças pelo Dia Nacional da Consciência Negra, da COMUNIDADE BETEL - ICM RIO - em 28/11/2010.
Imagens do Culto: