“Sei estar abatido, e sei também ter abundância; em toda a maneira, e em todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura, como a ter fome; tanto a ter abundância, como a padecer necessidade. Posso todas as coisas em Cristo que me fortalece.” (Epístola de São Paulo aos Filipenses, 4:12-13)
Uma dos mais belos aspectos de uma expressão religiosa[1] é a mística envolvida na vivência litúrgica. Não se enganem: há sempre uma liturgia, mesmo nos cultos de adoração de tipo extravagante que caracterizam a maioria das igrejas neo-pentecostais/neo-inclusivas. Dizer-se “livre de liturgia” ao acusar igrejas de vocação mais tradicional de “litúrgicas” só pode denunciar três situações: ou o acusador não sabe nem superficialmente o que significa liturgia; ou sabe e maliciosamente atrela a questão litúrgica a um tradicionalismo do qual jura não fazer parte; ou por absoluta má fé esquizóide, as duas coisas!
A liturgia vivida em sua plenitude escapa do campo simplesmente metafórico das récitas e prédicas que a compõem, promovendo no sujeito uma conexão serena e ao mesmo tempo avivada com o Sagrado. No caso do cristianismo, a liturgia assume uma importância extraordinária que pode e deve ser levada a sua radicalidade, chegando ao que conhecemos como a mística da fé. Rudolf Otto em sua obra “O Sagrado” nos ajuda a compreender isso a partir da noção de misterium tremendum, i.e., o Sragado em Mistério, mais que ainda assim conhecemos ao experimentá-lo.
Entretanto, a grande questão que atravessa muitas igrejas (e me refiro especialmente a esta caleidoscópica seara “protestante”, especialmente em sua versão pentecostal) é o misticismo que toma aos poucos o lugar da mística. Vejamos se consigo ser mais claro.
Há algum tempo atrás eu fazia um curso com um teólogo que muito admiro, Oswaldo Ribeiro, de quem destaco um belíssimo texto sobre a República de Judá a partir das visões do profeta Zacarias[2]. Oswaldo começou seu curso demonstrando sua apreensão diante do que considera uma “onda de misticismo barato que vai arrastando todo mundo”. Confesso que naquela época, ao ouvir isso, imediatamente pensei no poema Último Credo, de Augusto dos Anjos que diz:
Como ama o homem adúltero o adultério / E o ébrio uma garrafa tóxica de rum / Amo ao coveiro – esse ladrão comum / que arrasta agente pro cemitério!
O uso tóxico da mística, que pode ser chamado de misticismo[3] leva a falência do pensamento, a morte do simbólico e principalmente, como um remédio de tarja preta, poderá causar (e na maioria das vezes causa) dependência. Uma dessas noções “misticistas” que mais me assustam é a emulação do deus do impossível, termo que invadiu em cheio os altares crivélicos, macedianos, malafaicos e hernândicos, (dentre muitos outros genéricos de tarja preta igualmente tóxicos) e que destes vem transbordando para o mundo cristão espiritualmente lúcido, cada vez mais impotente, mas ainda assim resistente.
Repare que há uma significativa diferença entre uma narrativa litúrgica de um Deus que se revela como o Todo Poderoso, aquele que tudo pode, precisamente por ser o Totalmente Outro como sugere o teólogo-gênio Karl Barth. No mundo do Totalmente Outro não há impossibilidades! O terreno do limite, da impossibilidade e do falho é a esfera do humano, ao menos para a teologia e espiritualidade cristã. Portanto o epíteto do Criador não pode ser deus do impossível, cabendo-lhe um título realmente digno de sua Majestade: o Deus do Possível, aquele que permite o campo das possibilidades, que viabiliza nossos projetos, e ouve nossas orações.
O culto ao deus do impossível conduz, sem que percebamos, ao delírio alienante de não perceber o mundo ao nosso redor, nos seqüestrando de nossa realidade que pode e precisa ser transformada. Deliramos ao desejarmos limusines cujo aluguel custam 7.000 reais por dia, apartamentos de luxo, e muito, muito dinheiro. Afinal nosso deus é o deus do impossível. E assistimos estarrecidos e maniacamente excitados o testemunho do mendigo que hoje mora em uma cobertura do prédio diante do qual esmolou por 20 anos. Trabalho do deus do impossível, logicamente!
Uma vida estável em termos financeiros é algo que todos desejamos. Mas quando este projeto passa a ser um dogma teológico, dois fenômenos se produzem: uma comunidade religiosa neurastênica em busca do Eldorado e que se esquece que suas conquistas nesta vida implicam primeiramente em existir e olhar ao redor; e finalmente um pensamento alienante e perverso que secciona o Sagrado do mundo. (ainda vou escrever um texto sobre essa expressão evanglouca que diz, dedo em riste: “fulano não se converteu! É “do mundo”!)
O Deus do cristianismo que vivo na Comunidade Betel/ICM, é o Deus do Possível, o que é radicalmente diferente de um Deus de meras possibilidades. Ao contrário: adoro e exalto um Deus que preenche nossa realidade com possibilidades. E mais: um Deus que se faz presente em todas as possibilidades que encontro em minha vida. Nosso Deus está vivo, não na alucinação perversa que o deus do impossível promove; mas na vida que se constrói como milagre a cada dia, vida caótica e saudável, lúcida e fantasiosa, tranqüila e estressante, bonita e feia e em tudo isso, vitoriosa! Vida possível, no seio do Deus do Possível, justamente por saber que não há nada impossível para Deus.
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André Sena
Original de Tentando ser Cristão
[1] Não confundir com o termo “religião” tal como vem sendo abordado criticamente nos dias de hoje por muito teólogos.
[2] Ver em: http://www.oracula.com.br/numeros/022006/artigos/Artigo%20-%20Osvaldo%20Luiz%20Ribeiro.pdf
[3] Vale aqui ressaltar que uso de forma particular o termo misticismo, sem nenhum agravo aos movimentos místicos, exotéricos ou esotéricos de qualquer natureza, que também podem, em outro contexto serem denominados por este termo.
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