segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Um outro Rio mostra a voz nas urnas - por Leandro Rosetti.




Se tem um cronista para o qual eu tiraria o chapéu, não poderia citar outro nome senão Lima Barreto. Há quem o tome por cronista e interprete suas crônicas escritas no início do século XX como um amálgama entre História e Literatura, misturando, nos meandros do texto, situações de cunho ora jornalístico, ora ficcional. Eu penso um pouco diferente. Acho mesmo que a grande paixão de Lima Barreto era a História, e não pensem que digo isto com alguma parcialidade, porque para tanto não há qualquer motivo.

Um dos livros de Lima Barreto – obra póstuma publicada em 1923 – chamava-se “Os Bruzundangas”, uma coletânea de crônicas onde, dizem alguns, o escritor relataria, lançando mão de um belíssimo recurso literário, um país fictício, o que alguns intelectuais mais dados às Letras dizem hoje ser metáfora do nosso encantado e maravilhoso Brasil. Mas eis um segredo! O país dos bruzundangas existia, sim! Como existe ainda hoje, escondidinho em um canto qualquer do nosso planeta. Não é literatura, não. É relato histórico de cabo a rabo.

Infelizmente Lima Barreto não sobreviveu para presenciar a trajetória da Bruzundanga sobre a qual escrevera. Este era o nome da nação dos bruzundangas. O país ficou famoso porque, ao longo de sua história, seus cidadãos foram desatrelados da cultura do voto. É bem verdade que podemos atribuir isto ao fato de a Bruzundanga ter passado por duas grandes ditaduras. A primeira, sob a liderança do chamado “Pai dos Miseráveis”, o famoso Manda-Chuva G. Túlio Wargas. Dada uma trégua democrática, a Bruzundanga foi tomada por um surto ditatorial militar, cujos expoentes formavam um grupinho muito pouco coeso de milicos torturadores. De forma tal que a Bruzundanga formou gerações de quase-cidadãos, que desacreditaram em sua capacidade de influenciar os caminhos pelos quais o país caminharia. A confiança na classe dos Manda-Chuvas foi sendo perdida, na medida em que este grupo acostumou toda a gente bruzundanga a servir de muleta para a corja manca da política charlatã. Uma elite fétida, podre e capenga, que embutiu na classe média a esperança de estar um dia ostentando muletas de cedro, muito embora só possa, atualmente, cravar sobre os menos favorecidos um bastão de compensado barato, supervalorizado com altas taxas de juros nas Casas Bahia, e comprado em suaves e intermináveis prestações em crediário. Assim é a classe média bruzundanga: emergentes da pobreza e candidatos à elite.

Pois bem, a Bruzundanga atual é um país democrático, politicamente organizado, e ostenta o título de República Federativa da Bruzundanga. De quatro em quatro anos, os bruzundangas elegem seu presidente. Da mesma forma, mas com um hiato de dois anos, acontecem as eleições municipais, e qual não foi minha surpresa ao ver que as eleições bruzundangas aconteceram no início de outubro, assim como no Brasil! Oxalá não termos no nosso país a corrupção que encontramos lá, na sociedade dos bruzundangas. Uma corrupção de caráter, que vai desde o cidadão que fura a fila do banco até o presidente que fura... fura tanta coisa! O pior mesmo é quando tem um furo de reportagem, e aí a quadrilha política aparece, cínica como um bando de lobos que, disfarçados de cordeiros, fazem um banquete com alguns milhões de porquinhos. Aqui no Brasil não tem esse conto de fadas, não. A realidade nos conforta. Mas lá... tem até manda-chuvas pagando mensalões para os seus afilhados-colaboradores.

Um das cidades mais lindas da Bruzundanga – o Rio Dijaneiro – já foi capital do país, e vivenciou há algumas semanas as suas eleições municipais. E um grave perigo se instaurou no cenário dijaneirense. A ameaça surgiu de um grupo soberbo e enganador, detentor de status e prestígio, principalmente – no caso da Bruzundanga – por representar uma vertente religiosa deturpada e decaída, o IURD (Instituto Universal dos Reis-Deuses), que muito faz lembrar os personagens de Lima Barreto. Em suas crônicas, eles vivem na República dos Doutores – apelido dado ao país – cuja estrutura de poder bolina nossa dignidade e desvenda uma cultura política marcada pelo clientelismo e pelo favor. Nela, ser “doutor” significava não um título acadêmico, mas o passaporte para a promoção social, política e financeira. No IURD a diretriz caminha de maneira muito similar, com seus reis-deuses pregando aos quatro ventos uma teologia da prosperidade, o toma-lá-dá-cá divinal. Os fiéis-seguidores outorgam pra si o título de eleitos, e para os outros, o rótulo dos condenados.

Mas até então a concupiscência limitava-se ao âmbito religioso, resguardada pela liberdade de fé propagada na Constituição Bruzundanga. Porém, nesse ínterim, a classe média do IURD – os aspirantes a “doutores” – elegeu seu representante, para que este fizesse valer seus interesses mesquinhos e hipócritas no âmbito político da cidade do Rio Dijaneiro. Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias e autoridade para agir durante os meses de campanha política, onde toda a nação bruzundanga o identificava por um signo numérico. Aqui há sabedoria. Aquele que tiver entendimento calcule o número deste político, pois é número de um bispo. Ora, este número é dez.

O homem não podia ser originário da Bruzundanga, devia ser estrangeiro. Estrangeiro, sim. Não posso afirmar de surgiu o dito bispo – embora o tenha visto emergir do mar com dez chifres, dez diademas e uma faixa onde se lia: Cree Wella é dez – muito menos quem pariu o torpe verme. Mas imagino que seja estrangeiro, não apenas por seu nome e sobrenome, mas porque nunca se havia visto na Bruzundanga tamanha alegoria político-religiosa concentrada nas mãos de um único homem.

Seja de onde for, o fato é que a besta apareceu na política nacional, vestido de cordeiro, fazendo programas de tevê, anunciando aos povos a Terra Prometida, a Fazenda Canaã. E de cordeiro, passou a pastor, e de pastor virou lobo, e de lobo ascendeu ao status de rei-deus, e de rei-deus ganhou passaporte fácil para o Senado. Não satisfeito, o bispo quis alçar vôos ainda mais altos, candidatando-se à prefeitura da cidade para representar os interesses de seus súditos-religiosos. A conspiração era audaz, a estratégia era ousada, e o projeto, ambicioso: transformar o Rio Dijaneiro na cidade de Cree Wella. A idéia diretriz incluía mudar o nome da cidade Bruzundanga, que passaria a se chamar “Creewellândia”, e nela reinariam todas as suas idéias, que foram pensadas há muito em secretas reuniões bispais com os demais reis-deuses. E nos concílios, feitos às custas dos impostos dizimais dos súditos-fiéis, os reis-deuses receberam o aval da candidatura do bispo, respaldados pela promessa da vitória, oriunda de algum ser que eles disseram ser Deus. Certos da vitória nas urnas, deram início à campanha política.

Eu posso imaginar que nem todos os candidatos à prefeitura do Rio Dijaneiro eram exemplos de competência, ética e respeito à diversidade, mas nunca se vira um discurso tão segregador quanto o do candidato Cree Wella. Eu não sei o que o bispo pensou quando imaginou a criação da Creewellândia. Sua cidade virtual não condizia com a realidade da Bruzundanga: um país formado por bruzungangas, mas também por bruzundecas, bruzundocas, bruzundivas, bruzundíssimas, bruzundelas... O Rio Dijaneiro também sempre foi cheio dessa gente diferente, plural, mista, e tão cidadã quanto os bruzundangas – muito embora marcada por lutas sangrentas e muitas, muitas injustiças sociais – motivo pelo qual a pretensão de uma Creewellândia livre de todas esses agentes era, além da institucionalização do preconceito, a utopia de concretizar as idéias de uma vertente religiosa que caminha na contramão dos avanços sociais! O cúmulo da esquizofrenia: como negar a existência de um povo que não nega a sua identidade? Como lidar com um mundo em transformação utilizando um discurso tão arcaico, preconceituoso e mentiroso?

Das duas uma: se o Criador prometeu a vitória ao bispo, ou Deus enganou o profeta candidato ou o candidato era falso profeta, porque na disputa eleitoral Cree Wella foi infeliz. Aliás, sempre foi e deve sê-lo até hoje. Porque nenhuma candidatura, ou postura política, ou convicção religiosa, ou consciência crítica, pode ficar às margens das mudanças do mundo. Creewellândia seria uma cidade irreal, pois segregaria as diferenças, a pluralidade, as diversidades, a bruzundangalidade que sempre fez deste país a segunda nação mais hospitaleira do mundo (só perdendo para o Brasil, logicamente); seria uma cidade pobre, porque as idéias provenientes da corja putrefeita do Instituto Universal dos Reis-Deuses não têm consistência, senão por utilizarem com uma certa coerência um discurso do “quem-dá-mais”, fundamentado numa base lógica – que existe na matemática financeira – mas não no Evangelho pregado pelo Cristo, o Deus encarnado, o humilde carpinteiro, dois mil anos atrás; seria, ainda, uma cidade triste, porque retrocederia décadas, quando ainda as minorias da Bruzundanga sofriam impunemente as dores da violência e as amarguras do silêncio, e não tinham a alegria dos direitos conquistados através de suas lutas históricas por justiça social. E foi na esperança de que a cidade do Rio Dijaneiro não fosse transformada numa cidade irreal, pobre e triste, que a população dijaneirense – cansada do vício do clientelismo bruzundanga e convicta de que preceitos religiosos não devem jamais alçar vôo a ponto de impedir direitos civis – mostrou sua voz nas urnas nas últimas eleições municipais, impedindo o bispo Cree Wella de proclamar suas inverdades falaciosas no segundo turno das eleições, que acontecerá nas próximas semanas, restando-lhe apenas a euforia de ser, durante os dias de campanha, alvo da histeria coletiva de seus súditos-fiéis. E à população do Rio Dijaneiro, resta a esperança de que o prefeito eleito no segundo turno represente com ética, competência e justiça, os interesses de toda a comunidade dijaneirense, que inclui bruzundangas, bruzundecas, bruzundocas, bruzundelas, bruzundíssimas...

Eu queria mesmo é que Lima Barreto escrevesse crônicas sobre as eleições no Brasil de hoje, mas aqui, crônica mesmo ficou minha dor de ouvido, de tanto ouvir fogos, “jingles”, refrões animados e numerosos aglomerados humanos gritando uma melodia contagiante entoada para algum candidato às vésperas das eleições. Fora isso, sem muita polêmica. Houve um disse-me-disse aqui, um candidato impugnado acolá, outra que foi eleita na cadeia, mas nada que ultrapassasse a ordem natural das coisas no Brasil, pois pra tudo aqui dá-se um jeitinho. Na Cidade Maravilhosa, o pleito correu, como se deve imaginar, às mil maravilhas. Houve quem dissesse que algum candidato desqualificado à prefeitura ousasse desafiar a população com algum discurso vazio, preconceituoso e fundamentalista. Porém, em se tratando dessa gente, é melhor nem citarmos o nome. Já diziam os sábios: a palavra tem poder. Se o povo lhes dá corda, mais aumenta a sua fama.
Perdoem-me o equívoco, mais apropriado é dizer: a sua infâmia.

*Leandro Rosetti de Almeida é historiador, professor, funcionário público e membro da Comunidade Betel do Rio de Janeiro.

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