PENTECOSTES (πεντηκοστή)
Ao ler Os Evangelhos a Luz da Psicanálise, de Françoise Dolto com alguns amigos em minha casa, tenho percebido a importância dos arquétipos da família para uma hermenêutica possível do Evangelho. Hermenêutica inclusiva por excelência; primeiro porque a própria idéia de família implica em seu sentido mais amplo, no de inclusão, apesar das tentativas fundamentalistas milenares na direção contrária. E segundo porque o Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte de nosso país julgou procedente a demanda da comunidade LGBT pela emancipação jurídica na constituição de entidade familiar.
Papai, mamãe e filhinhos assumem a partir da minha leitura desta bela obra a perspectiva que um dos maiores gênios da psicanálise, Jacques Lacan elaborou para a questão dos papéis familiares, catapultando seus arquétipos para longe da escravidão dos papéis de gênero e da atividade reprodutiva. Lacan ressalta a paternidade, maternidade e filiação enquanto função, nos possibilitando ver de diversos ângulos a equação familiar: um homem-mãe, uma mulher-pai, um filho-mãe, um pai-filha, uma mãe-filho são algumas das várias possibilidades nesta complexa e riquíssima trama de relações. Então vejamos:
Em virtude da falta de possibilidade de um portal dimensional ou uma máquina do tempo que nos teletranspotasse ao 1º século da “era cristã” podemos apenas imaginar, e talvez no auge de nossa inspiração sentir, a angústia pela qual passavam os apóstolos, fechados em seu próprio medo em uma certa casa de Jerusalém durante os 49 dias posteriores a crucificação de Jesus Cristo.


Não podemos sequer auferir com toda rigidez essa contagem de dias e datação, que pode estar muito mais ligada à construção de uma tradição da Igreja do que provavelmente a acuidade histórica. Mas deixemos a história comprovável (isso é possível?) para a obcessão dos historiadores. E pensemos na vivência eclesial que nos empurra para a frente em nossas vidas diárias. Abracemos a tradição da igreja, mas sempre com o devido cuidado de tradução da tradição.
A magna data de Pentecostes aponta para o início da formação de uma entidade familiar: a cristandade. Entidade familiar diversa, plural, muito longe da noção estereotipada que conduz a homongeneidade nuclear e burguesa de família. Nem tampouco sugere-se uma família de “agregados”, esfarrapada em si mesma e sem qualquer traço de coesão afetiva.
Família com propósitos claros: crescer e multiplicar seus componentes, sejam eles quem forem, venham de onde vierem, cheguem como chegaren. E para isso o derramamento do Espírito Santo vem acompanhado das línguas estranhas/estrangeiras (o original grego aponta para a idéia de OUTRAS línguas ao invés de demarcar o adjetivo do estranhamento) afim de que toda a diferença se expresse na inclusão. Inclusão da tenda verdadeiramente aberta, e não a da homofobia cordial das igrejas fundamentalistas, que recebem o diferente de braços abertos e algemas nas mãos.
A entidade familiar que o Espírito Santo confirma em Pentecostes tem suas portas abertas para fora, e não para dentro. Recebe quem entra mas convida a sair para o mundo, semeando a Boa Nova e anunciando o Querigma do Senhor. Não é a família-conforto, sentada no trono ou paralisada no triplo Sanctus angelical diante do Trono. O Espírito Santo exorta a entidade familiar por ele consolidada à intrepidez e a ousadia; à fronteira e não a demarcação de território.
Família dinâmica a que as línguas de fogo abrasam no dia cinqüenta: cheia de pais, mães e filhos mixados na proposta lacaniana da função dos papéis. Família revolucionária, instável e nem por isso frágil. O cristianismo, hoje religião que menos cresce no mundo (apesar da histeria integrista brasileira) só tem solução na entidade familiar chamada cristandade, que o Espírito Paráclito de Deus tornou possível, e na pluralidade apostólica que pode e deve ser resgatada em nossos dias atuais. O que nos unirá será então apenas a centralidade barthiana em Cristo, aquele que realmente importa, e que nos presenteou e ainda presenteia em Pentecostes com o fogo do Consolador.
Uma família complexa justamente porque marcada pelo mistério divino, (o tremendum sagrado de Rudolf Otto) que condiciona sua formação a ousadia da desconstrução do edifício do ódio ilustrado desgraçadamente em grande medida nos dias de hoje pela homofobia e incitação à violência; muitas vezes diretamente dos púlpitos pastorais, que não comungam da pulsão inicial do dia de Pentecostes, mas se dizem pentecostais.
Neste domingo celebraremos a entidade familiar que Pentecostes anuncia: uma cristandade para todos porque para todos veio o Senhor.
Ecclesia reformata et semper reformanda!
André Sena

“Betel: fé que pensa, razão que crê.”
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Comentários
Sou estudante de jornalismo e estou fazendo uma matéria que gira em torno do tema homossexualidade e religião, principalmente após a oficialização da união entre pessoas do mesmo sexo na Brasil. Ao fazer uma pesquisa sobre a Igreja Inclusiva, encontrei seu blog e gostaria de entrar em contato para conversarmos sobre o assunto. Em que email posso contáta-lo ou em que perfil em redes sociais? Obrigada!
andremacabeu@hotmail.com